sexta-feira, 12 de maio de 2017

Mais uma história caipira

Entrei naquele restaurante mineiro apenas com a intenção de almoçar. Mas saí de lá com a impressão de ter realmente entrado em um cinema. Nada foi premeditado por mais estranho que possa aparecer. Enquanto estive lá revi e participei da sequência de um episódio antigo da minha vida.

Depois cogitei que, no passado, eu não tenha lido a rubrica “continua” no rodapé no final da primeira parte. Se isto for verdade estou diante de um verdadeiro mistério. Afirmo isso, pois esses detalhes não me passavam despercebidos no final dos filmes ou desenhos animados. Ainda me lembro de como esse aviso me excitava.

Isso exigia de mim muita organização para assistir o final. Muitas vezes adiantei os meus compromissos. Outras tive que reagendá-los para outras datas. Ainda, costumava desenvolver roteiros imaginários. Neles eu projetava e especulava a minha continuidade para depois compará-la com o original.

Nesse clima de suspense meus heróis ganhavam armas, truques na mangas, criavam estratégias que derrotariam o vilão. Ou usavam da astúcia para sair daquela enrascada que eles se meteram. Tudo isso para poder comparar as minhas recriações e a orginal.

Vale destacar, que nem sempre esses caracteres costumam aparecer de forma explícita. Um exemplo é a famosa frase “Il' be back” do Exterminador do Futuro I? É, vejo que essas coisas marcaram a minha memória. Suspeito que alguém despistou esse meu lado estrategista por algum motivo que desconheço.

Tudo leva a crer que neste dia acompanhei mais uma parte do enredo de forma inesperada. Depois imaginei que o Destino pregou-me uma peça. Isso foi o que mais me espantou nesse evento. Após muita reflexão, decidi relatar como foi este episódio.

Aquele restaurante funcionava num sobrado antigo do centro de Jundiaí. Na entrada, havia uma placa com o cardápio escrito a mão com giz branco. A caligrafia era sofrível. O espaço interno era amplo e limpo. A sala do bufê não era a de um palácio.

Ao contrário, ela se parecia mais um retrato do microcosmo gastronômico da minha infância. O calor do fogão à lenha abraçava descaradamente as panelas de ferros e os refratários. O encardido da fumaça vivia em simbiose com o vermelhão pintado sobre o cimento.

Decidi pelo sistema sirva-se à vontade, mais barato. No meu primeiro prato só teve verduras. Notei que tudo estava muito bom. O tempero estava muito próximo ao da minha mãe. Logo o restaurante ficou cheio de clientes. 

Em uma mesa próxima sentou um grupo de rapazes bastante falador. Certamente, operários de alguma obra da circunvizinhança. A princípio, pensei que eles atrapalhariam o sossego do meu almoço. De repente, um dos rapazes perguntou para os seus colegas: “alguém de vocês já comeu frango atropelado?”

Imediatamente comecei a rir sozinho, pois reconheci algo familiar naquele questionamento alheio. Sem querer fiz uma viagem interna. Já na primeira enxurrada de imagens, percebi uma riqueza oculta da minha infância. Na hora, por puro preconceito quase ignorei aquela manifestação psíquica vinda daquele questionamento.

Mas algo me falou alto lá! Notei que aquilo há havia provocado em mim um inesperado prazer. Fiquei ainda mais motivado em fazer uma imersão espiritual ali mesmo enquanto comia. A partir desse momento, já nem prestava mais atenção na outra mesa.

Resgatei imagens antigas da casa onde cresci. Ela ficava em um sítio no Interior paulista, à beira de uma via de terra. A cidade era uma miragem distante.

Tanto a minha mãe quanto a minha tia criavam galinhas caipiras. As mais ariscas costumavam fugir para o matagal do outro lado da avenida. Todavia, ali circulavam carros. Para as aves fujonas, cerca era meramente um detalhe. A solução encontrada tanto pela minha mãe quanto pela minha tia foi a de cortar as asas delas com tesoura.

Vrupt! Vrupt! Esse era o sinal de que mais um frango ou mais uma galinha que se contorcia no meio na rua. Nessas ocasiões, tanto eu quanto algum dos meus irmãos íamos pegá-lo. Em geral, já encontrávamos o animal estava todo ensanguentado e com as tripas para fora.

Lembrei-me que foram poucos os motoristas que deram alguma satisfação para nós. Desconfio que muitos daqueles animais foram mortos mesmo por maldade do que por imprudência dos condutores.

Iria parar por aí, porém constatei que alguns leitões tiveram a mesma sina que as galinhas. Ao contrário destas, eles escavavam por túneis com seus focinhos por debaixo da cerca de madeira. Pareciam ser verdadeiros tatus.

Sempre que um fortíssimo soava em algum compasso dos grunhidos era sinal de que algum deles tivera êxito na empreitada. Só que de vez em quando acontecia de um o outro não atravessar ou retornar são e salvo para o chiqueiro.

Também aproveitávamos a carne do leitão. Só o descartávamos, completamente, caso ele tivesse totalmente esmagado. Em seguida, colocávamos água em panelas grandes no fogão na casa de quem tinha o fogo aceso para ferver.

Depois começava uma cirurgia delicada. O porco era colocado em um estrado de madeira feito pelo meu pai para essa finalidade. O couro dele recebia aos poucos um banho daquela água quente. O pelo era retirado rapidamente com uma faca afiada para a pele não encruar.

Mas nem tudo ficava perfeito. A carne mesmo depois de cozida ficava com um pouco do gosto do pneu ou da terra. Tais ingredientes extras davam um toque especial nesse prato. Ainda no restaurante, não tive dúvidas de que era isto que o rapaz iria enfatizar para os demais colegas na sua conversa.

Que bom que este gostinho ainda não saiu da minha mente. Suspeito que isto é um bom sinal. Se essas lembranças são manifestações da tal felicidade, não posso afirmar agora. Não ficarei nada surpreso se no futuro descobrir o significado deste fato em outro capítulo. 

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